Jean se tornou um exemplo de sucesso. Apontado como uma das promessas do Bahia quando atuava nas categorias de base do clube, ele ganhou apoio da diretoria e iniciou o ano de 2017 como titular. A estratégia era arriscada, mas deu certo. O atual camisa 1 da meta tricolor se tornou um dos destaques do time no Campeonato Brasileiro. Para ter novos goleiros formados no Fazendão em condições de assumir a titularidade de forma inquestionável, o clube baiano investiu na organização. No início do ano, o projeto Paredão Tricolor foi implantado para garantir uma formação adequada aos atletas que estão nas categorias de base e assim assegurar que o futuro azul, vermelho e branco estará em boas luvas.
O projeto é liderado pelo preparador de goleiros do grupo profissional, Thiago Mehl, e conta com a participação de todos os preparadores da base. O Paredão Tricolor surgiu diante de pedidos da diretoria para que Mehl auxiliasse nas divisões amadoras e foi idealizado para modernizar os treinos fornecidos aos jogadores do clube. Baseada em dados científicos, foi elaborada uma metodologia que objetiva potencializar o talento de cada jovem goleiro. Desta forma, atividades físicas, técnicas e táticas são pensadas com base na idade dos atletas e aplicadas mediante uma grade pré-estabelecida de exercícios.
- Quando cheguei, senti um retorno do pessoal do clube, que achava interessante a forma de trabalho. No ano passado, o Marcelo [Sant’Ana], o Nei Pandolfo, que era diretor de futebol, e o Éder Ferrari [ex-gerente de futebol], pediram para passar ideias para a base. Mas quando é algo que não está 100% organizado, fica difícil. A gente subiu de divisão, e o presidente disse que esse ano queria criar o cargo de coordenador metodológico de treinamentos de goleiros. Sou fã disso, no Atlético-PR não tinha essa função, mas montei a estrutura de trabalho do Sub-23 para baixo. A escolha dos profissionais, captação de goleiros... Já tinha tudo meio mastigado para implantar em um clube, que era um dos meus sonhos. Assim surgiu o projeto Paredão Tricolor. Tinha que ter um nome, uma marca, para ser associado ao que a gente queria fazer. É um projeto de médio a longo prazo, mas que já começa a dar resultado. Não digo que já tem goleiro pronto da base para o profissional. Mas tem um norte, um caminho trilhado para isso – comentou Thiago Mehl.
Com um sistema pautado no aperfeiçoamento de fundamentos desde as primeiras categorias, o Paredão Tricolor tem o claro objetivo de criar no Fazendão uma filosofia de formação para goleiros. Mehl espera que, no futuro, o clube não precise contratar jogadores para a posição e que apostas certeiras, como a que a diretoria fez em Jean, tornem-se habituais.
- Prefiro não gastar dinheiro com goleiro. Acho que tem que dar oportunidade. O Jean [ex-goleiro] foi assim, o filho dele também, o Alisson no Internacional foi assim. Às vezes, o torcedor e a imprensa cobram muito a contratação de um cara experiente. Não penso muito assim. Acho que temos que olhar com carinho para quem é da casa, desde que o trabalho lá embaixo seja feito com qualidade.
A metodologia
O Paredão Tricolor funciona como uma escola para goleiros. Os exercícios são divididos em áreas técnicas, físicas e táticas, e ministradas para cada categoria de acordo com a complexidade. As atividades foram unificadas para criar familiaridade aos atletas. Existe a preocupação até com o nome dado a cada trabalho.
- Primeiro juntamos todos os fundamentos técnicos que achamos importantes para os goleiros. Fundamentos técnicos gerais que o goleiro usa. Inclusive a própria nomenclatura dos movimentos. De onde eu vim, tem um exercício que chamava de punho, aqui em Salvador chama de empunhadura. O goleiro que é do sub-15 e vai trabalhar no profissional vai encontrar a mesma linguagem durante todo o percurso - diz Thiago Mehl.
Na parte técnica, os garotos do Sub-14 e Sub-15 são submetidos a atividades de fundamentos básicos com mais frequência. O desejo dos preparadores é que os atletas dominem os movimentos primários ainda nas primeiras etapas das divisões amadoras. Ao chegar no Sub-17 e no Sub-20, além dos exercícios básicos, os jovens goleiros passam a trabalhar diariamente ações de dificuldade elevada, como praticar defesas com a mão menos hábil.
- Às vezes, tinha goleiros que chegavam no profissional com um fundamento básico sem perfeição. E aí gerava a pergunta: “O que esse cara fez lá em baixo, nas categorias de base?”. Alguma coisa foi trabalhada errada. A ideia é minimizar esses erros. Ele não vai trabalhar só esses fundamentos, mas vai dar mais ênfase a esses. Trabalhou legal os básicos no Sub-15, no Sub-17 e Sub-20, vai trabalhar os mais complexos e os básicos, que não deixam de ser treinados. Tendência é chegar no profissional com fundamentos e qualidade técnica muito próximos da perfeição. São sete anos só treinando esses fundamentos. Por isso falo que é um projeto de médio a longo prazo.
A parte física não se limita a atividades na academia e possui embasamento teórico. Com o corpo em desenvolvimento, os garotos com idade até 15 anos não realizam trabalhos de força na sala de musculação. Os treinos são voltados para a agilidade e também envolvem a parte técnica (como no vídeo abaixo).
- Capacidades físicas que consideramos iniciais que devem ser trabalhadas mais no Sub-14 e Sub-15 são habilidade motora, coordenação motora, velocidade de reação e resistência aeróbica. Nessa idade, fisiologicamente falando, a bibliografia mostra que não tem que ter essa preocupação [com trabalhos de força]. Habilidade motora e coordenação motora, se insistir muito, vão ajudar a ter técnica melhor. O cara bem coordenado vai ter uma boa técnica motora. (...) A resistência aeróbica trabalhamos por ser a idade que o atleta tem para preparar o coração e pulmões para receber carga anaeróbica. Faz muito circuito físico, faz fundamentos, trabalha com intensidade menor, mas um volume maior, para quando chegar no Sub-17 e Sub-20 receber carga na academia, treino de tração e força, que são importantes para os goleiros.
Os garotos também passam por treinos que compreendem as funções táticas do goleiro moderno. A habilidade com os dois pés é incentivada para melhorar a saída de jogo.
- O goleiro hoje, no futebol moderno, precisa construir o jogo também. Ele tem que passar para o Sub-17 com o conhecimento de como dar passe com a direita, com a esquerda e como dar opção para o defensor. Estão sendo treinados para isso. No Sub-14 e Sub-15, eles treinam o passe curto. No Sub-17 e Sub-20, ele tem maior ênfase no passe longo e utilização das duas pernas.
Os atletas recebem ainda orientações sobre zonas que devem ser evitadas pelo risco de proporcionar um gol adversário. Tiago Mehl usa como exemplo o pênalti cometido por Jean contra o São Paulo, na 19ª rodada. O goleiro se precipitou e derrubou Lucas Pratto, que estava na lateral da grande área, de costas para o gol e com marcação. O preparador afirma que, se Jean respeitasse a orientação, não teria feito a penalidade.
Em busca da perfeição
O Paredão Tricolor não se limita a criar um sistema de treinos para os goleiros do Bahia. O projeto também inclui orientações para a captação de jovens talentos. Em busca da perfeição, os preparadores do clube trabalham para definir um perfil que servirá de base para a aprovação de futuros atletas. As exigências incluem altura, tipo de fibra muscular e também a envergadura dos garotos.
- Estamos em processo de definição disso. Altura, estatura, a gente não definiu. Mas vai ter uma média. Hoje a média do Sub-14 é 1,77m. Vai ser definida uma média para cada categoria, mas não chegamos a um número ainda. Queremos goleiros de maior potencial de fibra rápida. Goleiro precisa ser rápido, ágil e forte. E em Salvador a gente tem uma situação interessante, muito goleiro negro, que comprovadamente tem mais fibra rápida. Queremos goleiros rápidos e leves. Goleiro pesado ainda tem hoje, mas está acabando. Os melhores do mundo são rápidos, leves e fortes. Envergadura também é importante. Goleiro com braços longos. Tudo isso a gente começa a olhar hoje na hora de captar. Não quer dizer que não vamos errar, mas vamos reduzir os erros - afirmou Tiago Mehl.
O projeto é elogiado por quem já esteve em campo. Atual preparador de goleiros do Sub-17 do Bahia, Jean aponta que a sistematização da formação pode ajudar atletas criados no Fazendão a chegar mais longe na carreira.
- A gente brinca, se tivesse isso quando comecei a jogar, mesmo na base, teria ido mais longe. Tenho dois anos nessa profissão de treinar goleiros. Estou aprendendo muita coisa. É difícil. Eu jogava, e a didática é muito diferente. Passar aquilo que você sabe para os moleques é diferente. Se conseguir passar isso para a molecada, vão chegar no profissional com aquilo que eu não tive na base. Não tem nem o que comparar com o que eu tive na base. Eu ia muito pelo meu talento. O que esses meninos têm... Estamos passando para esses moleques chegarem no profissional com maestria. Não tinha no meu tempo. Mas a gente tem que transformar o tempo de hoje para que os moleques tenham mais subsídios. Que batam de direita e esquerda, saiam do gol com as duas mãos. Façam reposição com qualidade. A gente está seguindo esses passos para que as coisas aconteçam – disse Jean, que terá o curso de preparador de goleiros da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) totalmente custeado pelo Bahia.
Titular da equipe Sub-20, o goleiro Cassiano destaca a mudança na dinâmica dos treinos. Ele afirma que, no início, teve dificuldades para acompanhar a nova rotina, mas agora vê evolução nos principais fundamentos exigidos para a posição.
- Se adaptar ao trabalho é mais complicado por não ter a base. Você se atrapalha, mas, depois de um tempo, começa a se adaptar e se sente bem melhor. Até mesmo com a perna esquerda, sou destro, não tinha o estímulo, agora tenho. Saída de gol tinha pouco. Agora tenho mais. A gente se sente melhor. Com esse estímulo, a gente consegue, com fé em Deus, chegar ao profissional. Quanto mais se repete o exercício, mais se aprimora. A gente vai fazendo todos os dias, e chega a um ponto que é natural.
Cassiano tem 18 anos e chegará ao profissional com apenas parte da formação pautada no Paredão Tricolor. Para Thiago Mehl, os garotos que estão no Sub-14 e vão integrar a filosofia do projeto desde o início têm potencial para chegar ao profissional com fundamentos ainda mais aprimorados.
- Como começou esse ano, 2017, eu penso que o goleiro que está na primeira categoria, nascido em 2003, vai chegar ao profissional pronto. Pelo menos cinco anos para passar por todas as etapas. É tudo estímulo. Não quer dizer que o Cassiano, do Sub-20, não possa atuar bem no profissional - destaca o preparador de goleiros.
Entre a teoria e a prática, Mehl tenta substituir a intuição pelo conhecimento científico e por uma didática moderna. E o desejo do preparador é deixar um legado para que, no futuro, o Paredão Tricolor seja uma referência para todo o país.
- A bibliografia para goleiros no Brasil é um pouco pobre. Se peço para o Jean comprar um livro de treinamento para goleiros, não tem informações que gostaria que tivesse. Tem muito em Portugal, Espanha, Estados Unidos. Os caras estudam mais lá. Mas goleiro bom tem aqui. Queira ou não, isso aqui amanhã pode se tornar um livro da escola de goleiros do Bahia. Quando terminar isso, pode publicar a metodologia de goleiros do Bahia. Vai ajudar muito clube e preparador de goleiro.
Fonte: Globo Esporte