Postado por - Newton Duarte

Escravos da bola: a história de jogadores explorados pelo futebol

Escravos da bola: a história de jogadores explorados pelo futebol

Esqueça o universo paralelo de Neymares e Ronaldinhos. A maioria dos jogadores brasileiros ganha mal — quando recebe —, enfrenta condições precárias de trabalho e é refém de uma atividade que explora a troco de ilusões

Pitol também sofreu com salários atrasados

Os escravos da bola | Crédito: Renato Pizzutto

Aos 43 do segundo tempo, o baiano Kemerson, 21, realiza um sonho no agreste sergipano. Ele substitui o meia Fernando, dá três toques na bola e não evita a derrota do seu time para o Santa Cruz. Mas aqueles 5 minutos bastam para enchê-lo de orgulho. O zagueiro pode dizer aos parentes de Feira de Santana que já disputou a segunda competição mais importante do país, a Copa do Brasil. O entusiasmo, entretanto, logo se transforma em frustração. Sem dinheiro e sem comida, não havia mais como permanecer no casebre que abrigava quatro jogadores por cômodo. Dois meses depois de sua façanha pessoal, Kemerson deixou o Lagarto.

Nem o motim liderado pelos colegas que se recusavam a treinar enquanto não recebessem os dois meses de salários atrasados evitou o desfecho de sua aventura em Sergipe. Hoje ele desbrava o interior de Goiás e se prepara para a segunda divisão do campeonato estadual com o América de Morrinhos. Ainda não recebeu os cerca de 2,000 reais que o Lagarto lhe deve. “Quando me ligaram, prometeram mundos e fundos. No fim, quase passei fome”, conta o defensor. A história de Kemerson se cruza com a de grande parte dos mais de 20.000 jogadores profissionais do Brasil. Eles raramente aparecem na TV, não trabalham com carteira assinada nem ostentam contas bancárias de sete dígitos. São os operários explorados pelo futebol.

O zagueiro baiano nunca teve carteira assinada e tenta a sorte no América-GO

O zagueiro baiano nunca teve carteira assinada e tenta a sorte no América-GO | Crédito: Carlos Costa

FOME, FADIGA E AGONIA

Propriá está a 160 quilômetros de Lagarto. É lá que fica a sede de outro América, bicampeão sergipano. Em 2013, um ano antes do martírio de Kemerson, o atacante Murilo, 22, desmaiou de fome assim que o time saiu de campo derrotado pelo Confiança. Na noite da partida, o clube, que devia um mês de salário ao elenco, não teve verba sequer para bancar o jantar da delegação. Profissionais de imprensa que cobriam o jogo ofereceram biscoitos recheados aos jogadores do América. “A alimentação não era adequada. Corri muito em campo e chegou uma hora em que eu não sentia mais o corpo”, diz Murilo, que atualmente trabalha carregando sacos em Ourinhos, interior de São Paulo, enquanto aguarda uma nova oportunidade. Ele saiu do América após travar o pé no torrão de areia do gramado esburacado em um treino e ouvir o estalo da perna esquerda quebrando.

Murilo passou mal depois de jogo pelo América-SE

Murilo passou mal depois de jogo pelo América-SE | Crédito: Revista Placar

Jogadores de outros estados chegaram ao América por um salário mínimo, mas, com a queda para a segunda divisão, receberam apenas parte do combinado. Thiago Bento, 24, ex-companheiro de Murilo, desabou de Arapiraca, Alagoas, com a esperança de deslanchar. Acabou sofrendo a segunda desilusão da carreira. Em 2011, havia arcado com a passagem para percorrer mais de 2.300 quilômetros rumo ao Cotia, da quarta divisão paulista. Dois meses venceram, nenhum centavo pingou em sua conta, e ele decidiu ir embora levando na bagagem um cheque (sem fundos) de 1.600 reais. “Jogador sofre demais”, afirma. Desempregado no futebol, o zagueiro faz bicos como servente de pedreiro.

Thiago Bento está sem clube

Thiago Bento está sem clube | Crédito: Cláudio Lima

Maycon Gaudencio, 24, jogou no América de Propriá em 2012, quando o time subiu para a primeira divisão. Abandonou o emprego em um mercado da cidade para assinar seu primeiro contrato. Em vez de ganhar um salário mínimo por mês, embolsou apenas 300 reais ao fim do campeonato. “Passo difculdade, não tenho casa, minha mulher está grávida. Esse dinheiro me faz falta”, diz o lateral. Situação que o experiente goleiro Carlos Henrique, 34, aprendeu a administrar ao longo da carreira. Ele jogou em praticamente todos os times profissionais do Piauí, até mesmo nos tradicionais River e Flamengo. Levou calotes na maioria deles. “É perda de tempo cobrar na Justiça. Os clubes não têm como pagar.”

Com duas décadas de rodagem, Carlos Henrique achou que já tinha visto de tudo até jogar o Piauiense de 2014 pelo Caiçara. “Nunca recebi um tostão lá.” No alojamento, cama era artigo de luxo. Jogadores dormiam em redes ou colchonetes esparramados pelo chão. Tomar banho, só de cuia. Não havia chuveiros nem material de treino apropriado. “Um negócio desumano”, afirma Vasconcelo Pinheiro, presidente do Sindicato dos Atletas do Piauí, que apresentou denúncia à Procuradoria Regional do Trabalho. Os atletas, porém, se recusaram a assinar o requerimento, e a investigação não foi adiante. “Eles têm medo de retaliações e de ficarem queimados no meio.” Apesar de ter terminado em último lugar, o clube segue na primeira divisão piauiense este ano.

Na concentração do Caiçara, de Campo Maior, atletas dormiam em redes e colchonetes

Na concentração do Caiçara, de Campo Maior, atletas dormiam em redes e colchonetes | Crédito: Revista Placar

Em times como Lagarto, América e Caiçara, dirigentes costumam intimidar atletas para abafar atrasos de salários. Alguns jogadores relatam já ter ouvido ameaças como “Vou acabar com sua carreira” e “Não joga mais em lugar nenhum” ao reivindicarem seus direitos. A coação é tão banalizada quanto as fraudes trabalhistas. No início do ano, o Sindicato do Piauí enviou um ofício à Superintendência do Trabalho e Emprego propondo fiscalizações em oito clubes do estado, incluindo os seis da divisão principal. Além de dívidas e condições laborais degradantes, nenhum deles faz anotação em carteira. Geralmente com baixa escolaridade, poucas alternativas no mercado e movidos pelo sonho de ascender ao restritíssimo escalão que amealha cifras milionárias com as chuteiras, jogadores são reféns de uma profissão que reprime e explora.

“Minha vida sempre foi na estrada, viajando atrás da bola. Não tive tempo de estudar”, diz Kemerson, que largou a escola assim que concluiu a 8ª série. “Apesar das difculdades, não vou desistir do futebol.” O estigma por não vingar na carreira também contorna o cenário de indigência do ofício. O advogado João Henrique Chiminazzo, especialista em direito esportivo, explica o círculo vicioso que pode recair sobre jogadores presos a clubes mal-estruturados e devedores. “O atleta que sai de um time sem receber acaba aceitando contratos ainda mais absurdos para tentar sobreviver. E nada garante que eles serão cumpridos.” De acordo com Alex Garbellini, procurador do Ministério Público do Trabalho (MPT), o número de violações trabalhistas em clubes de futebol tem aumentado. Casos extremos tornam latente o sucateamento da profissão. “Jogadores sem salário, sem comer direito, à beira do amadorismo, são o exemplo clássico da escravidão contemporânea.”

O pé de obra nacional

O pé de obra nacional | Crédito: Revista Placar

A BASE DA PIRÂMIDE

Clubes grandes também agonizam. Recentemente, os elencos de Botafogo e Santos ameaçaram fazer greve por causa de seguidos atrasos de pagamento. Na Portuguesa, atletas como Valdomiro, 36, contabilizam sete meses de salário a receber. “Futebol é uma ilusão. Na verdade, é uma máquina de explorar jogadores”, diz o zagueiro, que só tem conseguido pagar as contas e até emprestar dinheiro a colegas mais jovens graças às economias que juntou em seus seis anos no exterior.

Assim como ele, pelo menos outros nove do elenco se queixam da falta de pagamentos prolongada. A diretoria lusitana, que reconhece as dívidas, quitou os salários de janeiro, já que o regulamento do Campeonato Paulista prevê, em todas as divisões, a perda de pontos de equipes que não pagam em dia. A regra, no entanto, tem se mostrado inefcaz. Além da Portuguesa, Grêmio Barueri, São José e Marília, que acumula três meses de salários atrasados, estão inadimplentes em 2015. Denúncias dependem de representação formal dos atletas no sindicato e, até agora, nenhum clube foi punido.

Valdomiro teve salários atrasados na Lusa

Valdomiro teve salários atrasados na Lusa | Crédito: Renato Pizzutto

Somente no Ministério Público do Trabalho de Campinas correm 23 processos contra times da região, 18 a mais em relação há quatro anos. Em todo o Brasil, o MPT registra 917 procedimentos envolvendo fraudes trabalhistas e violações de direitos dos jogadores desde 2002. Alguns estados, como Piauí, Sergipe, Acre, Mato Grosso do Sul e Espírito Santo, vivem situação crônica de atrasos salariais, onde praticamente todos os clubes operam no vermelho. Também há casos de camisas tradicionais atoladas na crise, a exemplo de Guarani, Paraná Clube e Vila Nova. O goleiro Marcelo Pitol, 32, cobra na Justiça cinco meses de salário referentes a sua passagem pelo time goiano em 2013. Não é a primeira vez que ele protagoniza um litígio trabalhista. Levou cinco anos para receber uma dívida do Náutico e outros cinco para entrar em acordo com a falida Ulbra, de Canoas (RS).

“Jogar e não receber afeta o rendimento”, diz o goleiro, que carrega os escudos de 19 clubes no currículo e hoje defende o Aimoré-RS. “É duro ir treinar e ver jogadores pedindo dinheiro emprestado. Se for mal em campo, aí que o dirigente não paga mesmo.” A demora para receber na Justiça é cruel com jogadores da parte mais baixa — e extensa — da pirâmide. Dependendo do clube, eles são obrigados a pagar do próprio bolso custos de até 2.000 reais para se inscreverem nas federações. Rescisão de contrato sem justa causa, então, é infortúnio ainda maior. Demissão no futebol raramente assegura benefícios típicos de todo trabalhador. É praxe na maioria dos clubes devedores não recolher o fundo de garantia e o INSS, apesar de a contribuição muitas vezes ser descontada no salário dos jogadores. Com isso, sobretudo se não tiverem anotação do vínculo na carteira de trabalho, eles enfrentam dificuldade para usufruir do seguro-desemprego. Advogados podem arrolar o benefício em eventuais ações judiciais, mas, como o processo contra clubes costuma ser longo, o atleta precisa se virar até fechar um novo contrato.

Pitol também sofreu com salários atrasados

Pitol também sofreu com salários atrasados | Crédito: Edison Vara

SEM UNIDADE

O Rio Grande do Sul é o único estado que estabeleceu um piso salarial para a classe: 1.000 reais. Não raro, sobretudo nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, jogadores treinam e jogam o mês inteiro para receber menos que um salário mínimo (788 reais). “Estamos preparando uma convenção nacional em abril para instituir o piso e outras medidas  importantes em todos os estados”, diz o presidente nacional do Sindicato dos Atletas, Rinaldo Martorelli. Outro problema enfrentado pelos jogadores em clubes pequenos é a falta de um calendário anual de jogos. “Só conseguimos contrato de quatro, cinco meses para disputar Estaduais. Quem não joga em clube grande corre o risco de ficar o resto do ano parado”, afirma Pitol. O caminho para socorrer os nanicos é árduo. O Bom Senso F.C., movimento encabeçado por atletas experientes, exige campeonatos mais abrangentes da Confederação Brasileira de Futebol (CBF).

Rompido com o sindicato, o grupo diverge da entidade em questões-chave como a proposta de aposentadoria para os jogadores e a Lei de Responsabilidade Fiscal, que prevê a criação de uma agência reguladora para fiscalizar e punir clubes em inadimplência. O projeto depende de aprovação no Congresso Nacional. Enquanto isso, dirigentes de Caiçara e América de Propriá, que está inativo desde o ano retrasado, não foram encontrados para comentar os casos de exploração dos jogadores. Aloísio Andrade, presidente do Lagarto, afirma que a antiga gestão foi responsável pelos calotes e que tem tentado acertar as dívidas com atletas que deixaram o time. Kemerson segue à espera de um contato, uma chance em clube grande. Ou ao menos de ser tratado como jogador de futebol, um trabalhador, não como mercadoria.

OSSOS DO OFÍCIO

Existem alguns pontos que diherem o boleiro profissional do trabalhador comum

Jornada de trabalho

Enquanto a maioria dos trabalhadores formais tem carga horária fixa por semana, a jornada do atleta de futebol é flexível. A duração dos treinos varia de acordo com o técnico e, como os jogos acontecem à noite ou em fins de semana, não há pagamento de horas extras.

Equiparação salarial

A remuneração não é definida conforme a função. O atacante de clube pequeno recebe menos que o de clube grande, assim como no mesmo elenco podem conviver um zagueiro que ganha 100.000 reais e outro, 1.000.

Tempo de contrato

O vínculo de jogadores com os clubes tem duração pré-estabelecida. eles raramente recebem seguro-desemprego, a não ser que a equipe rompa o acordo antes do término. Nesses casos, podem perder o benefício se o empregador não tiver recolhido INSS.

Férias e descanso

Jogador não tem direito a vender parte das férias nem de fracioná-las. Previstas em contrato, elas devem coincidir com o período de encerramento da temporada. A folga remunerada semanal difcilmente é concedida no fim de semana, por causa dos jogos.

ATAQUES À PROFISSÃO

Como os clubes têm violado os direitos do jogador de futebol

Direito de imagem

Em vez de pagar o salário integral em CLT, dirigentes atrelam a remuneração aos direitos de imagem do jogador, que, em tese, deveriam ser utilizados pelo departamento de marketing. mas a artimanha serve para eximir o clube de encargos trabalhistas. Jogadores de times grandes, como Fred, do Fluminense, recebem mais direitos de imagem que o salário em carteira. O clube carioca deve 4 milhões de reais ao atacante por ter atrasado quase dois anos o pagamento da imagem.

A lei do calote

Se o clube deixa de pagar os vencimentos ou recolher o fundo de garantia (FGTS) e INSS por três meses, o atleta pode rescindir o contrato de forma unilateral. Para não perder jogadores, times maiores adotam a prática de quitar o salário da CLT, geralmente um valor simbólico, e não pagar os direitos de imagem.

Escravidão moderna

Além de não honrar o pagamento de salários, clubes endividados e sem estrutura impõem condições de trabalho análogas à de escravo e colocam em risco a integridade física dos jogadores, sendo que muitos deles acabam sofrendo assédio moral e são até extorquidos por dirigentes.