'Tudo tem um limite, e o futebol brasileiro chegou ao seu', diz Romário
No subsolo de uma ala do Senado Federal, a porta número 11 leva ao gabinete de um ex-camisa 11 da seleção brasileira, que trocou o uniforme por terno e gravata. "Essa geração é uma merda. Tem o Neymar, o Neymar e o Neymar", diz Romário, 49, sobre os garotos que hoje ocupam o lugar que já foi seu. Indagado sobre se escalaria ele próprio —Romário— aos 23 anos, quando jogava na Holanda, ou Neymar, também 23, em seu momento atual, o senador não hesita: "O Romário de 23 anos era pica".
O cenário é diferente, mas o Romário do Senado se parece muito com o dos gramados. "Eu não gostava do protagonismo", diz. "Eu amava o protagonismo. E isso vai ser eterno para mim."
Depois de brilhar no futebol por mais de 20 anos, ultrapassando, em suas contas heterodoxas, a marca dos mil gols, vencendo a Copa de 1994 pela Seleção e outros tantos títulos por clubes como Barcelona, Vasco e Flamengo, o atacante largou as chuteiras em 2008 e decidiu buscar seu espaço em Brasília. Em 2010, foi eleito deputado federal pelo PSB e, neste ano, estreou no Senado. "O Romário não é mais ex-jogador, hoje ele é senador da República."
O famoso "baixinho", de 1,67m, que agora prefere a alcunha de senador, acaba de ser eleito presidente da chamada CPI do Futebol, criada para, em suas palavras, "moralizar o futebol brasileiro". Ele recebe a reportagem com um aperto de mão e semblante fechado no gabinete de número escolhido por ele e decorado com um quadro do ex-atacante ao lado da filha caçula Ivy, 10, xodó do político, que tem síndrome de Down. Uma grande bandeira do América-RJ, seu time de coração, e uma réplica da taça da Copa do Mundo completam o ambiente, cujo acesso é guardado por belas assessoras.
O senador idealizou a CPI no fim de maio, após a prisão do ex-presidente da CBF José Maria Marin, na Suíça, em meio ao escândalo de corrupção na Fifa, a maior instituição do futebol. A comissão foi instalada no dia 14 de julho, data da visita da reportagem, dois dias antes do recesso parlamentar.
"O mais importante aconteceu hoje, parceiro", diz Romário, usando uma de suas expressões mais conhecidas pela única vez na entrevista. "Agora é começar os trabalhos."
NO LIMITE
Uma reportagem da revista "Veja" deste sábado (dia 25) acusa o ex-jogador de ter uma conta bancária não declarada em um banco suíço, com saldo de cerca de R$ 7,5 milhões. No Facebook, Romário ironizou a reportagem e ameaçou processar a revista. "Como trabalhei em muitos clubes fora do Brasil, é possível que tenha sobrado algum rendimento que chegou a esta quantia", escreveu. "Estou me sentindo um ganhador da Mega Sena, só que do meu próprio honesto e suado dinheiro."
O senador vem prometendo que, com a CPI do Futebol, conseguiria a prisão de nomes como Marco Polo Del Nero, presidente da CBF —a quem chamou de "safado, ladrão e ordinário" e que teria sido citado em relatório do Departamento de Justiça dos EUA sobre a corrupção na Fifa como "coconspirador"—, e Ricardo Teixeira, ex-mandatário da entidade também citado pelo órgão americano, além de indiciado pela Polícia Federal por lavagem de dinheiro e falsidade ideológica. "Tudo tem um limite. E o futebol brasileiro chegou ao seu. É hora de a gente reorganizar, repaginar e moralizar tudo isso."
A iniciativa é encarada com desconfiança em alguns setores do esporte. O Bom Senso F.C, movimento criado por jogadores para brigar por melhores condições no futebol brasileiro, não se animou com a instalação da CPI. Temem que as investigações percam o foco ou acabem em pizza.
Os 11 senadores escalados para compor a comissão não animam quem torce pela renovação do futebol. Dois políticos, por exemplo, são investigados na Operação Lava Jato da Polícia Federal: o ex-presidente Fernando Collor (PTB-AL) e o relator Romero Jucá (PMDB-RR). Outros nomes são velhos conhecidos dos bastidores do esporte, como Zezé Perrella (PDT-MG), presidente do Cruzeiro durante 18 anos e que, em 2013, alegou que investigar os gastos dos estádios do Mundial não seria bom para a imagem do Brasil às vésperas da Copa.
Romário defende o time: "Independentemente dos problemas que o senador Jucá está enfrentando agora, ele me disse que, nesta CPI, realmente está com vontade de melhorar o futebol". Mas promete inovar na presidência da comissão: "O relator vai apresentar o relatório dele, e eu vou apresentar o meu. Não tenho rabo preso com ninguém". O presidente da CPI pode, mas não costuma exercer o direito de elaborar um relatório próprio.
Quanto ao rabo, há quem discorde. O ex-atacante é criticado pela boa relação com o presidente do Vasco e ex-deputado federal Eurico Miranda, um dos principais investigados na primeira CPI do futebol, no fim dos anos 1990, por enriquecimento ilícito e falsidade ideológica. "O Eurico é meu amigo mesmo, um dos poucos que fiz no futebol", diz.
"Mas, se ele faz coisas que não têm que ser feitas no futebol, tem que pagar por elas. As pessoas acham que não, mas com certeza o convidarei para depor na CPI. Uma coisa é uma coisa, e outra coisa é outra coisa", afirma o baixinho.
Desde que chegou ao Senado, no começo do ano, Romário vem ganhando espaço na casa. Preside a Comissão de Educação, Cultura e Esporte e foi relator de leis importantes, como o Estatuto da Pessoa com Deficiência, que garante direitos como o pagamento de auxílio-inclusão para deficientes que trabalham e que era uma das principais bandeiras do senador, e a Lei das Biografias. "Quando fui eleito deputado, a maioria torcia o nariz para mim", diz. "Noventa e cinco por cento desses deputados acharam que eu passaria batido pela minha legislatura. Eu era um dos que eles chamam de personalidadezinha."
"Estudei ciências políticas por oito meses, ninguém pode dizer que eu caí aqui de paraquedas", diz o senador que fez aulas particulares com o doutor em ciência política Leonardo Petronilha.
VIDA NA SELVA
A agenda do ex-atacante guarda diferenças com a de outros senadores. Um horário é reservado diariamente para o autógrafo de camisas e objetos mandados para o gabinete. Funcionários do local o abordam para tirar selfies. Na Câmara dos Deputados, um colega levava as visitas de seu Estado para sessões de tietagem com o ídolo semanalmente.
Nos dois dias em que a reportagem acompanhou o ex-jogador no Senado, ele chegou às 14h. No primeiro dia, participou da abertura da CPI. No outro, após participar de uma reunião a portas fechadas sobre mudanças no acordo ortográfico, comandaria um encontro da Comissão de Educação —cancelado por falta de quórum. O senador resume a sua rotina política: "Fico terça, quarta e quinta em Brasília, vou embora na sexta. Chego no Rio e vou direto pro meu escritório, onde fico até o final do dia. Nos fins de semana, eu viajo para remontar o PSB no Estado. E segunda é dia de conversa política".
E deixa escapar um desabafo: "Quando me aposentei do futebol, achei que ia levar uma vida legal. Mas a verdade é que é uma selva de caralho", brinca. Contudo, diz não se arrepender. "A vida de político é cansativa, mas eu gosto. Acho legal."
Difícil é arrancar dele um elogio a algum congressista. "Não tive nenhuma influência na política. Quem mais me influenciou foi a Ivy", diz, sobre a filha a quem atribui sua entrada na nova profissão. O interesse do pai pela condição da menina fez com que se aprofundasse no tema.
"Nos primeiros cinco anos dela, eu entrava em contato com pessoas pela internet para me inteirar do assunto. Me fizeram entender que eu poderia ser uma voz atuante por essa causa em Brasília. E assim eu vim."
Quando ainda era jogador, Romário costumava dizer que, se houvesse 0,1% de chances de fazer um gol, ele jamais tocaria a bola para um companheiro de ataque. Até hoje, reafirma a sua máxima: "Não daria o gol nem para a Ivy. Ela teria que esperar a próxima".
Acostumado ao estrelato desde que apareceu como garoto prodígio no Vasco, aos 19 anos, Romário sempre foi individualista e esquentado. Chegou a estapear um colega de equipe no gramado e, na Holanda, pediu ao tradutor que explicasse xingamentos aos médicos do PSV, equipe em que jogava.
RAINHA DA INGLATERRA
Dos tempos de PSV aos de PSB pouca coisa mudou no comportamento dele. Em agosto de 2013, ainda deputado federal, colidiu com a cúpula de seu partido.
"Não concordava com os votos deles", diz o senador. Na época, o PSB era aliado do governo do PT. Romário rompeu com o partido e negociou a ida para outra legenda.
"O Eduardo Campos [então governador de Pernambuco e presidente do PSB] me pediu que voltasse e assumisse a presidência do partido no Rio", diz. "Aceitei, mas fui rainha da Inglaterra durante alguns meses. Nas reuniões do diretório, composto por sete pessoas, eu sempre perdia por 6 a 1. Falsificaram minha assinatura em cheques. Quando eles marcavam reuniões, elas aconteciam; quando eu as marcava, não."
Depois da morte de Eduardo, em agosto de 2014, e da expressiva votação conquistada por Romário na eleição para senador (mais de 4,6 milhões de votos, o 3º mais votado do país) o cenário mudou para ele dentro do PSB. "Me transformei em presidente de fato", diz.
Recentemente apontado como segundo colocado nas pesquisas de intenção de voto para a prefeitura do Rio, Romário ainda não anunciou oficialmente a candidatura, mas está animado para concorrer ao cargo. "A posição política mais charmosa no Brasil hoje é ser prefeito do Rio", diz. "Isso é uma vontade minha, sim."
Certa feita, após uma partida contra o Corinthians na qual se destacou, Romário disse "Quando eu nasci, papai do céu apontou o dedo para mim e falou: 'Esse é o cara'". Desde então, vem batalhando pra provar que Deus estava certo.
"As pessoas podem não gostar disso, mas tenho que ter atitude. E aqui, no Senado, não é diferente", diz. "Eu não tenho meia palavra, não levo três minutos pra falar uma coisa que pode ser falada em cinco segundos. Não falo bonito. Sou pragmático. Dizem que, no meio político, isso não é bom, mas o resultado tem sido positivo. Então pra que mudar? Na minha vida, sempre fiz quase tudo errado e sempre deu quase tudo certo."