Postado por - Newton Duarte

Medo, fome e mentiras: Sonho do futebol deixa brasileiros abandonados em Portugal

Medo, fome e mentiras: Sonho deixa brasileiros abandonados em Portugal

Acusções de lado a lado marcaram a vida de Caio (foto) em Portugal

Acusções de lado a lado marcaram a vida de Caio (foto) em Portugal - ASF/Andre Alves

Alexandre Rambo, 18 anos, tem nome de herói de cinema e espera tornar-se um herói do futebol. Foi com esse sonho que deixou os juniores do Paraná Clube e viajou para Portugal.

"O meu agente chegou a acordo com outro empresário brasileiro chamado Éder Lucas Zem. Este senhor disse-nos que tinha conhecimentos no Porto e ficou combinado que eu iria assinar contrato para jogar nos juniores. Nunca duvidamos da história porque o empresário tinha outros futebolistas em Portugal. Incluindo alguns que jogaram comigo no Paraná", lembra.

Rambo aterrou em Lisboa em 7 de dezembro, mas nunca foi para o Porto. O seu destino seria outro: "Primeiro fui levado para o Alcanena [pequeno clube da 3.ª divisão portuguesa]. Disseram-me que iria treinar ali apenas para manter a forma até assinar pelo Porto. Ao fim de uma semana, um funcionário do Éder deixou-me num hotel em Lisboa e mandou-me treinar no Sacavanense [outro clube da 3.ª divisão]. Mais uma vez dizendo que seria temporário, apenas para não ficar parado, até ingressar no Porto."

Passados poucos dias, Rambo recebeu um telefonema de Éder. Afinal não havia negócio com o Porto e o jogador teria de regressar a casa. "Disse-me que iria pagar a conta do hotel e tratar do bilhete de avião." Mas o tempo passou, a conta foi acumulando, e a administração do hotel confrontou o jogador. "Tentei falar com o Éder, sem sucesso. Deixou de me responder."

Em desespero, Rambo contactou o seu agente no Brasil. "Foi ele que conseguiu voltar a falar com o Éder e confrontou-o com a minha situação. Respondeu-nos que estava a tratar de tudo." Em todo este período, Rambo nunca viu Éder. "Falamos apenas por telefone e whatsapp."

O jogador pensava regressar ao Brasil em janeiro, mas o agente só resolveu a sua situação no último dia 23 de fevereiro depois de saírem notícias em Portugal sobre este caso. Até essa altura, Rambo esteve a viver da caridade do hotel e de um restaurante, do outro lado da rua, onde o deixavam almoçar e jantar.

"É mais uma história triste e não podíamos deixar o miúdo sem comer. Vem jantar sempre e almoça de vez em quando", confirma José Marinho, proprietário do restaurante Carlina, em Lisboa. "Chegou com um sul-africano, um cabo-verdiano e outro brasileiro. Vieram aqui com um português que trabalhava para esse agente brasileiro. Esse tipo veio pagar uma despesa deles e depois disse-nos que, a partir daquele momento, se eles quisessem comer no restaurante, tinham de pagar." Os outros três jogadores foram-se embora e ele ficou sozinho: "Estava sempre com a mesma roupa e não tinha dinheiro. Pelo menos aqui não passava fome."

Rambo chegou mesmo a admitir que ponderou não dar a entrevista por temer represálias: "Estou aqui sozinho, não conheço ninguém, mas tinha de denunciar este caso. Não aguentava mais." Apesar do pesadelo que está a viver, admite embarcar em nova aventura no estrangeiro: "Claro que voltava. O futebol vale tudo. Mas agora só se tiver um contrato assinado", garante.

Medo de falar

Brasileiros e africanos são os principais alvos deste abandono. Muitos só conseguem voltar para casa com o apoio do Sindicato dos Jogadores Profissionais de Futebol (SJPF).

Joaquim Evangelista, presidente do SJPF, recorda que este órgão tem ajudado vários atletas estrangeiros a voltar ao país de origem: "Intervimos sempre que possível porque também gostamos que os sindicatos de outros países façam o mesmo com jogadores portugueses que possam estar em situação semelhante no estrangeiro."

Evangelista garante que há cada vez mais atletas estrangeiros abandonados no futebol português, embora muitos fiquem em silêncio: "Só podemos agir quando há denúncias, mas essas denúncias são raras porque os jogadores têm medo de nos procurar. Seja porque são ameaçados por agentes e clubes, que lhes dizem que nunca mais jogam em lado nenhum se falarem, seja porque não querem voltar aos seus países, onde vivem em pobreza, com o sentimento de terem fracassado na Europa. Aguentam até entrar em desespero."

A novela de Caio

No final do mês de janeiro, o SJPF pagou a viagem de regresso ao Brasil do extremo brasileiro Caio Silva, 22 anos. Uma história que se tornou numa verdadeira novela envolvendo o jogador, o seu representante Sérgio Neves e a Naval 1.º de Maio, clube onde o jogador treinou. Com acusações de parte a parte. Caio diz que foi abandonado pelo seu empresário e pelo clube: "A Naval deu-me um prazo para desocupar o apartamento onde estava e aí entrei em contacto com o Sindicato porque não tinha forma de voltar ao Brasil nem local onde ficar. Cheguei a pedir ajuda ao meu empresário, mas ele mandou-me vender pizzas."

O jogador estava em Portugal há quatro meses e diz que treinou sempre na Naval. Porém, quando chegou, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) questionou a sua legalidade e o empresário conseguiu regularizar tudo através da colaboração de um cidadão português. Com o problema resolvido, Caio pensou que iria jogar pela Naval, mas afirma que o clube não lhe fez um contrato de trabalho com a justificativa de que o brasileiro "não podia alegar os descontos de trabalhador". Vera Azul, diretora da Naval, tem outra versão: "Nunca lhe dissemos que queríamos ficar com ele. Apenas permitimos que fizesse alguns testes, mas a nossa equipa técnica não gostou. Depois disso deixamo-lo ficar numa habitação nossa por uma questão de caridade."

O clube também revela que o jogador mentiu acerca do seu passado futebolístico no Brasil. Caio tinha dito que foi federado pelas categorias de base do Bahia e do Santos e pelos seniores do Atlético Paranaense.

"Quando pedimos o certificado internacional à CBF disseram-nos que não tinham qualquer registo dele. Nunca tinha sido jogador Brasil", defende Vera Azul. "Enganou-me, mostrou-me um vídeo falso, em que não era ele a jogar. Nunca tinha jogado em lado nenhum", alega Sérgio Neves.

A verdade está no meio.

Caio, realmente, nunca esteve federado pelo Atlético Paranaense ou pelo Santos, mas representou o Bahia: "Jogou nas nossas divisões de base, nas categorias de infantil e juvenil, acabando dispensado e depois reprovado numa nova tentativa de ingressar na equipa sub-20 dos juniores", frisa Nelson Barros Neto, diretor de comunicação do Bahia.

Tráfico humano no futebol

Evangelista frisa que nestes casos cada um "conta a sua história". "A Naval e o agente envolvido vieram dizer que foram vítimas de burla de um jovem de 22 anos que tinha vindo do Brasil. Pior ainda. Se isto fosse verdade, significa que agentes licenciados ou não licenciados trouxeram um jogador para Portugal, que não conheciam, e um clube deu cobertura a isso sem fazer qualquer tipo de fiscalização. Mas esteve lá quatro meses. É muito tempo para ver se o jogador tem qualidade ou não. Isto revela uma tremenda hipocrisia."

O presidente do SJPF afirma que o tráfico humano no futebol é uma realidade: "Foi por isso que em 2001 a União Europeia instituiu o regulamento internacional de transferências proibindo as transferências de menores de 18 anos. Ou seja, já nessa altura havia vários casos de jogadores abandonados. Ao contrário do que alguns pretendem fazer querer, o fenomeno existe. Não vale a pena negá-lo."

Evangelista salienta que existem redes organizadas a operar nesta área: "Trazem um conjunto de jovens estrangeiros e colocam-nos em clubes que se predispõem a ser barrigas de aluguer desses empresários. Se os jogadores tiverem sucesso, há um ganho financeiro proveniente da transferência. Se não tiverem sucesso, ou forem notificados pelo SEF para voltar a casa, têm de suportar todos os encargos dessa viagem de regresso e são abandonados. Aliás, a própria vinda para o nosso país é suportada por esses jogadores ou pelas suas famílias. Esta é a prática existente."

O especialista em direito desportivo João Diogo Manteigas lembra que "existem muitas casas espalhadas por Portugal com dezenas de miúdos de várias nacionalidades que estão ali apenas à espera de serem levados para algum clube". O próprio Caio disse ao SJPF que ficou numa dessas casas com mais uma dezena de outros jovens. Agora está de regresso à Bahia. À espera de um clube onde possa jogar. Seja no Brasil ou noutro país. Nunca mais teve contacto com o seu agente.