Postado por - Newton Duarte

Muito além da Seleção: Olodum mistura ritmo, futebol e consciência

Muito além da Seleção: Olodum mistura ritmo, futebol e consciência

Músicos da banda falam sobre shows realizados no Pelourinho em dias de jogos do Brasil, pedem paz e igualdade nos estádios e contam histórias sobre o futebol

É silêncio no Pelourinho. Turistas e baianos se misturam pelas ruas apertadas com calçamento de pedra, entre prédios coloniais coloridos. Cada um em seu próprio mundo, entre poses para fotos, sorrisos e devaneios. De repente, um produtor de televisão dá o sinal. O som penetrante de um tambor é a resposta que ecoa nas ladeiras e escadarias do Centro Histórico de Salvador. O ar é preenchido com a mistura de samba reggae, futebol e alegria. Já não é silêncio em Salvador. Já não existe silêncio em nenhuma outra parte do mundo.

- Bem amigos da Rede Globo. A Seleção Brasileira está no vestiário, prestes a entrar em campo para buscar o hexacampeonato. Enquanto a bola não rola, vamos para a Bahia, para as ladeiras do Pelourinho, ouvir os tambores do Olodum. Bem lá do fundo. Vem trazendo o som... – convoca o narrador Galvão Bueno.

Sem se fazer de rogado, o convite é aceito pelas fileiras de percussionistas de um dos grupos de maior sucesso da Bahia. Criada em 1987, a banda Olodum se tornou uma espécie de trilha sonora não oficial da Seleção Brasileira nas Copas. Não importa o lugar, não importa o horário. Em cada transmissão de partidas do Brasil em mundiais, a ligação direta com Salvador é feita diretamente das cabines da TV Globo. Os tambores ditam o ritmo da torcida no Pelourinho e em milhares de residências do país. Hippie, pop, reggae e rock, o Olodum pira de vez nos dias de jogos.

Olodum arena fonte nova (Foto: Divulgação / Arena Fonte Nova)

Tudo começou na Copa de 1990, na Itália. O então vice-presidente do grupo, Petronilio Alves de Jesus Filho, o Petu, teve a ideia de tocar no Pelourinho nos dias de jogos da Seleção Brasileira. A equipe verde e amarela, no entanto, parou nas oitavas de final, eliminada pela Argentina de Maradona e Cannigia. Para seguir com o projeto, a banda decidiu honrar as raízes africanas da Bahia. Passou a tocar em apoio a Camarões, seleção comandada por Roger Milla.

- Aí que começou essa coisa do Olodum fazer parte e comemorar durante a Copa, sempre torcendo por uma seleção africana, quando o Brasil fosse eliminado. Enquanto a Seleção Brasileira estiver participando de algum torneio, vamos torcer pela Seleção do nosso país. Quando a Seleção não está disputando, escolhemos uma e, se tiver uma africana, vamos torcer por ela. Depois fomos convidados para os Estados Unidos (Copa de 94), para a França (Copa de 98) e foi criada a torcida Brasil-Olodum – conta o cantor Lazinho, que passou dez anos afastado do grupo musical, mas voltou ao Olodum em 2012.

A banda Olodum participou da abertura da Copa do Mundo de 2014, em São Paulo (Foto: AFP)

O ritmo dos tambores chamou a atenção. O Olodum passou a se apresentar nas sedes das Copas para levar um pouco da Bahia para o mundo. A mistura entre futebol, samba reggae e alegria fazia sucesso. E em 2002, a Globo fez o convite para o mundial realizado na Coreia e no Japão. Os tambores que já haviam ganhado o planeta apareceriam nas telas da televisão. O amarelo ouro da Seleção Brasileira ganhava contornos negros. E o verde, vermelho, amarelo e preto do Olodum ganhava tons ditados pelo povo.

- Isso aconteceu em 2002, porque já existia uma força. A força do Olodum vem do povo. A gente já reunia muita gente aqui. A Rede Globo, sabendo disso, chamou o Olodum e, de lá para cá, essa parceria vem sendo mantida toda vez que a Seleção for disputar uma competição mundial – completou Lazinho.

Na Copa de 2006, o Olodum deixou as ruas de Salvador e ganhou a Alemanha. O grupo foi convidado pela Fifa para tocar na festa de abertura do mundial, no Portão de Brandemburgo, em Berlim. O som dos tambores também ressoou nas ruas de outras cidades alemãs onde havia partidas programadas, a exemplo de Munique e Frankfurt. Parte da banda ficou na capital baiana para dar sequência à tradição. Bastava Galvão Bueno dar o sinal para que a pulsação do Pelourinho fizesse parte das transmissões dos jogos da Seleção Brasileira.

Em 2014, mais uma vez o Olodum foi escolhido para tocar na abertura da Copa do Mundo, em São Paulo. Desta vez em casa, para brasileiros acostumados ao ritmo baiano. A tradição de se apresentar no Pelourinho em dia de jogos do Brasil estava mantida e atraía em número cada vez maior os turistas que estavam na capital baiana para ver os jogos do mundial na Arena Fonte Nova. A festa, contudo, terminou de forma melancólica. No dia oito de julho, a Seleção Brasileira era goleada pela Alemanha por 7 a 1. O riso desaparecia, o tambor ficava mudo, a folia chegava ao fim, era silêncio em Salvador. Era silêncio em todas as partes do mundo.

- Assistimos e choramos. Não esperávamos perder de 7 a 1, mas a gente sabia que chegar numa final seria impossível... Depois da derrota, não teve mais como a gente tocar. Estávamos muito tristes, porque o futebol é a nossa vida, a nossa paixão, e não tinha como tocar. Para comemorar o quê? A derrota não honrosa? Não que quem estivesse lá não tivesse lutando. Eles têm famílias para alimentar e tem a torcida que ficou decepcionada... Mas bola para frente, outras Copas virão - pondera Lazinho.

ESPORTE CLUBE PROTESTO OLODUM

O futebol está além da bola. E o Olodum está além dos tambores. Está acima de ser apenas a trilha da Seleção nas copas. Com força e pudor, a banda também é a voz do protesto, da Liberdade ao Pelourinho. O som que declara à nação que, na vida e no esporte, todos são iguais. Independentemente da cor, religião, classe social, local de nascimento ou opção sexual.

- Quando a gente chama uma pessoa de macaco, esquecemos nossas origens. Que a gente vem do macaco. Então pedimos providências contra o racismo, contra o preconceito, contra a intolerância religiosa e a homofobia. Porque o jogador de futebol é tido como machão. Quando descobrem que o cara é gay no futebol é aquele absurdo. O esporte não nasceu para um ou dois, o esporte nasceu para todos. O cara que inventou a volta olímpica, pouca gente sabe, mas foi um negro brasileiro [Adhemar Ferreira da Silva]. O pulo na hora de comemorar o gol quem criou foi um negro brasileiro e rei do futebol: Edson Arantes do Nascimento. Então o esporte não é lugar de nenhum tipo de preconceito. Vamos curtir o esporte em paz, porque onde tem paz tem felicidade - alerta Lazinho.

Quando descobrem que o cara é gay no futebol é aquele absurdo. O esporte não nasceu para um ou dois, o esporte nasceu para todos".

Lazinho

A história do Olodum está diretamente ligada à luta contra a segregação. Até a década de 1970, os grandes blocos do carnaval da Bahia eram compostos majoritariamente por brancos. A história só começou a ser modificada anos mais tarde, com a criação de blocos como o Ilê Aiyê. A música, a religiosidade, a linguagem e a luta eram levadas para os circuitos de carnaval e reuniam folia e consciência. Como projeto cultural e político de luta contra o preconceito, o Olodum nasceu. E carrega as marcas da luta até hoje, cicatrizes de guerra expostas a cada "rataplam" do tambor.

Andreia Reis é um dos exemplos de igualdade dentro da banda. Ela faz parte do primeiro grupo de mulheres a integrar a percussão do grupo e assumiu papel de protagonista. Atua como maestrina e tem como missão marcar o ritmo da banda, além de ditar batidas, variações e a progressão, em auxílio ao mestre Memeu.

- Eu não me sinto discriminada nem na música nem no futebol. Já joguei futebol, em time amador no bairro que moro, e sempre fui muito bem recebida. Sempre fiz amizades com os meninos e com as meninas. Sempre tive meu espaço na bola, na música, e nunca me senti discriminada. Mas sabemos que há, até hoje, preconceito com mulheres que jogam, com racismo, homofobia. São coisas tristes para o Brasil e o mundo inteiro. Futebol foi feito para diversão e alegria. Não tem que existir racismo, violência ou homofobia. Para mim, isso é muito triste e, graças a Deus, nunca aconteceu comigo. Sou torcedora do Bahia, mas gosto do futebol. Sou brasileira e lamento o rebaixamento dos times baianos, mas sigo amando meu time e torço sem demagogia para o Bahia e para o Vitória voltarem para a elite do futebol brasileiro. E quem sabe não voltam embalados pelos tambores do Olodum - comentou a maestrina.

O discurso do protesto Olodum ecoa também contra a violência nos estádios. O percussionista Gilmário faz um apelo para que as torcidas evitem os confrontos. Como na música "Manifesto pela paz", o músico "clama a tolerância, clama a paz harmonia para um mundo florescer".

Olodum entrevista (Foto: Thiago Pereira)

Olodum fala sobre futebol, racismo e violência em entrevista ao GloboEsporte.com (Foto: Thiago Pereira)

- Nós que somos do Olodum e amantes do futebol, prezamos a paz dentro e fora do estádio, porque isso não condiz com nossa realidade. Você vai para o estádio se divertir, e hoje você vê como as coisas estão caminhando. O Olodum clama por paz com tantas músicas que falam disso como “Não, não brigue, não mate, não morra não. Porque a vida é preciosa, não deixe passar em vão”. É o que a gente espera como mensagem do futebol que vai começar nesse final de semana. É a mensagem do povo baiano, nordestino e especialmente da banda Olodum. Que tenhamos paz e tranquilidade - afirma.

BA-VI DOS TAMBORES

Nas Copas, a cor do Olodum é o amarelo da Seleção Brasileira. No entanto, embaixo do manto nacional, cada um tem sua própria preferência. E, nas fileiras da banda, a maioria atende pelas cores azul, vermelho e branco. Os torcedores do Vitória também estão no Olodum. E mesmo nos dias de Ba-Vi, as diferenças impostas pelo mundo da bola não passam das provocações.

Bahia expôs a marca do Olodum nas mangas da camisa (Foto: Divulgação / EC Bahia)

- Ninguém é perfeito. Por incrível que pareça, tem Vitória (risos). Esse ano a gente não pode nem comemorar porque estão os dois na Segunda Divisão, porque senão um ia tirar o couro do outro. Agora aqui na Bahia algumas pessoas estão tentando implantar a violência, mas graças a Deus isso não vai acontecer. Esse tipo de violência não pode acontecer. Inclusive gostaria de pedir que a justiça brasileira punisse com rigor essas pessoas que vão para o estádio para causar brigas, mortes. Eu quero para meus filhos o que meu pai e minha mãe faziam comigo. Eles me levavam para o estádio de futebol. É preciso pedir providências ao Congresso. Nós não aceitamos, afinal futebol é uma coisa muito cara no Brasil. Nós não queremos violência no futebol. Queremos paz. Depois dos jogos há confraternização entre os jogadores, então por que não pode existir entre as torcidas? Afinal somos todos pais e filhos - declarou Lazinho.

A rivalidade entre os dois times provocou uma situação fora do comum no ano passado. O Olodum firmou uma parceria com o Bahia durante a Copa 2014 para utilizar a camisa do Tricolor nos shows realizados no Pelourinho. O objetivo era divulgar a marca do clube nas chamadas feitas pela transmissão das partidas. Contudo, os próprios músicos admitem que os torcedores do Vitória se negaram a usar o uniforme do rival.

O Olodum também recebeu homenagens do Bahia. Em maio do ano passado, o time baiano aproveitou a ausência de patrocinador nas mangas no uniforme para homenagear o bloco, que completava 35 anos. A marca do Olodum foi estampada na camisa do Tricolor para o duelo contra o Fluminense, na Arena Barueri, pelo Campeonato Brasileiro.

Olodum agita o Pelourinho durante os jogos do Brasil (Foto: Reprodução / TV Bahia)

Olodum agita o Pelourinho durante os jogos do Brasil (Foto: Reprodução / TV Bahia)

Nem tudo, entretanto, é feito de flores na relação entre o futebol e o Olodum. Em 2013, o bloco homenageou o esporte no carnaval de Salvador e confeccionou abadás com escudos de diversos clubes, entre eles Bahia e Vitória. No entanto, o escudo do Rubro-Negro usado não foi a marca oficial, mas sim uma versão feita por torcedores rivais com a inscrição “VICE” em vez das letras ECV.

O amor por Bahia e Vitória renova a fé e agita os tambores. As camisas dos dois clubes baianos enchem as fileiras do Olodum de orgulho e provocam a certeza de que é possível fazer frente a qualquer time no Brasil.

- Bahia e Vitória, pela torcida que têm, são times para brigar de igual para igual com os maiores do futebol brasileiro. Mostramos dentro de campo e fora de campo com a energia também - pontua o percussionista Araye, ao lembrar da força das torcidas dos dois clubes.

SAMBA, FUTEBOL E ALEGRIA

Uma das cenas mais marcantes da Copa de 1994 foi a comemoração de Bebeto nas quartas de final da partida contra a Holanda. No dia 7 de julho daquele ano, o atacante se livrou da marcação laranja, driblou o goleiro, empurrou a bola para o fundo das redes e correu para a torcida como os braços em arco, como se embalasse um bebê. Dois dias antes, o filho do jogador, Matheus, havia nascido no Brasil. A distância foi perdoada pelo tetra conquistado nos Estados Unidos.

Muitos jogadores copiaram a comemoração de Bebeto. Mas o percussionista Gilmário foi além. Reproduziu a história com a própria família. A diferença é que ele não era atleta profissional, não estava na Copa e os Estados Unidos permaneciam a milhares de quilômetros de distância.

- Somos muito profissionais e dependemos da música. Não podemos deixar de vir para o ensaio ou show por causa do futebol. Mas aconteceu na minha vida algo inusitado por conta do futebol, que me deixou marcado até hoje por minha esposa. Eu, por ser amante e ter tido o sonho de querer ser um jogador de futebol, pago preço até hoje. Eu deixei o meu primeiro filho, Henrique, na maternidade, por causa do futebol. No mesmo dia em que eu tinha que pegar ele na maternidade, eu tinha que disputar uma final de campeonato amador. Isso foi uma das coisas assim que a esposa não perdoa, mas valeu a pena, porque fomos campeões. Mas até hoje pago esse preço, porque a esposa pega no pé - diz Gilmário entre risos.

Na mistura de futebol, samba reggae e alegria, o Olodum dá aulas que vão além da festa ou do gramado. Quando os tambores ressoam no Pelourinho, é sinal de que a consciência e revolta baiana têm voz. E ela pode ser ouvida em todo o mundo. Mesmo que não haja jogos do Brasil ou transmissões de TV.

- A música faz parte do futebol. Não tem como dividir. A torcida cantando na arquibancada transmite força para os que estão em campo. E nós da música, cantando, não esquecemos, porque, quando saímos dos shows, procuramos divertimentos, e um deles é o esporte. Gostamos de outros, mas o que gostamos mesmo é o futebol. Temos que parabenizar também atletas que agora que estão tendo algum tipo de ajuda. Mas o recado para os jovens brasileiros é que pratique esportes. Não desista, ele ainda é o melhor caminho para lhe levar para algum lugar, principalmente os garotos da periferia. Lutem pelos seus espaços, mas lutem com dignidade. Vamos seguir cantando para que essa semente chegue até vocês, crie raízes e, quem sabe, um dia vocês estejam lá fazendo gol pelo Brasil e nós torcendo por vocês - finaliza Lazinho.