Postado por - Newton Duarte

O Estado tem como promover a profissionalização do futebol?

Governo tem carta na manga para fazer o profissionalismo deixar de ser uma ilusão no Brasil

Dilma Rousseff com os integrantes do Bom Senso FC, Alex, Ruy Cabeção e Dida (AP Photo/Eraldo Peres)

O futebol é uma grande indústria mundial. Atualmente, o esporte movimenta € 450 bilhões anualmente, sendo que os times, ligas e confederações faturam, juntos, € 22 bilhões por ano. Disputar com a Europa é difícil, mas o Brasil tem condições de ser mais forte, mais rico e mais atraente aos torcedores. Como? Será preciso ser mais profissional em sua gestão nos clubes e na organização de campeonatos. O que vemos no futebol brasileira passa longe de ser modelo de gestão, ou de boas práticas esportivas. O governo não é responsável pela gestão dos clubes, nem dos campeonatos organizados no país. Mesmo assim tem um trunfo na mão para exigir mudanças no futebol como um tudo e melhorar o esporte e estamos em um momento decisivo para discutir isso.

A Premier League é, atualmente, a liga mais rica do mundo e gera € 2,9 bilhões em arrecadação anual, seguido da Bundesliga alemã, com € 2 bilhões, La Liga, da Espanha, com € 1,9 bilhão, Serie A, da Itália, com € 1,7 bilhão, Ligue 1, da França, € 1,3 bilhão e do Campeonato Russo, com € 900 milhões. O Brasil aparece apenas no sétimo lugar, com receitas dos 20 clubes da Série A somando € 800 milhões. Esse dinheiro é o gerado pelos clubes, mas a indústria do futebol vai muito além disso. Pelo seu tamanho e potencial, o Brasil poderia estar em uma posição melhor.

Os clubes pagam a seus jogadores, que gastam esse dinheiro no país. Para ficar só no superficial, as TVs compram direitos de transmissão dos torneios e geram suas receitas com publicidade. Os veículos de imprensa cobrem o futebol para terem audiência e gerarem dinheiro com publicidade. Diversos produtos são feitos, de camisas a brindes, com marcas dos clubes. Isso sem falar em livros que são escritos, jogos de videogame que pagam pelos direitos de usar marcas das ligas, clubes e jogadores e daí por diante. Todos esses setores pagam impostos e são altos. Na Inglaterra, por exemplo, os jogadores dos principais times, que estão na faixa mais alta de salários do país, pagam cerca de 50% de imposto sobre o que recebem. Pois é, os impostos são impiedosamente altos para aqueles que mais recebem, o que faz os clubes falarem em salário líquido quando contratam os jogadores, uma vez que cada país possui uma taxação.

Uma grande diferença entre as ligas que mais arrecadam no mundo e o Brasil passa por dois pontos. O primeiro é a organização profissional, como uma liga. Mais do que uma entidade, é uma empresa, que tem a participação de todos os clubes no processo de decisão. Outro lado importante é que os clubes, em sua enorme maioria, funcionam como empresas. Exceções são Barcelona e Real Madrid, que funcionam institucionalmente como os clubes brasileiros – não são empresas, não possuem fins lucrativos e seus presidentes são eleitos por um colégio eleitoral de sócios. Ainda assim, sua gestão é mais profissionalizada.

No Brasil, os clubes não funcionam como empresas, o que não é necessariamente ruim do ponto de vista da gestão, como os casos de Barcelona e Real Madrid mostram. O problema passa muito pela falta de uma melhor gestão dos clubes, dos torneios e a ausência de uma liga que organize profissionalmente os campeonatos. Com a CBF à frente dos torneios no Brasil, pouco interessada em fazer deles campeonatos rentáveis, fica muito mais difícil alcançar esse nível e faturamento e de força técnica das grandes ligas. Por isso, é preciso trabalhar na profissionalização.

A cultura de clube não é um ambiente empresarial

A simples contratação de um executivo remunerado é insuficiente para se falar em profissionalização do futebol. É preciso uma estrutura toda profissional, com um planejamento estratégico. E é preciso ter quem seja preparado para isso, o que ainda não é uma realidade. Muitos dirigentes já assumiram clubes Brasil afora com ideias da boa prática de gestão empresarial em mente. Nos grandes clubes brasileiros, isso quase nunca funcionou. Isso porque os clubes, embora tenham faturamento na casa de dezenas de milhões de reais (alguns na casa das centenas), são entidades sem fins lucrativos, muitos deles com clubes sociais e uma política interna muito mais complexa do que uma diretoria de empresa.

“A razão de existir de um clube são justamente os dirigentes não-remunerados, ou seja, amadores. Este é o aspecto fulcral que sustenta essas entidades. É pela crença no manto e na história clubística que se baseia todo o enredo de adoração pela marca, cores, mascote, costumes e por aí vai. Os torcedores-consumidores alimentam seu fascínio e fidelidade por tudo isso que norteia a entidade, por todo esse imaginário”, diz Geraldo Campestrini em artigo sobre o dilema da profissionalização, na Universidade do Futebol.

Com essa estrutura, os gestores dos clubes não podem se dar ao luxo de aplicarem apenas as boas práticas empresariais que se vê no mercado. O futebol, como negócio, é muito diferente os demais, com características bastante próprias – por exemplo, os consumidores são têm outra opção no mercado se o seu produto não for bom. O torcedor do clube não muda de clube. É preciso, então, trabalhar para que esse consumidor seja atendido tanto nos momentos de alta em campo quanto nos momentos de baixa. Além disso, é preciso lidar com conselheiros e uma estrutura de poder que não é uma diretoria, apenas.

“As tomadas de decisão passam a ser um conjunto de pensamentos, em que o respeito aos costumes daquele ambiente deve, em certos momentos, prevalecer em detrimento daquilo que parece ser a forma mais correta a fazer pelas teorias da administração – e é isso que acaba, em muitos casos, determinando o sucesso ou o fracasso da organização”, afirma ainda Campestrini.

Querer a profissionalização do futebol, porém, é uma batalha árdua. Não é uma mudança simples de ser feita. Atualmente, os clubes são associações sem fins lucrativos. E, assim, uma organização que não precisa ter dirigentes remunerados. Eis um problema sério: os dirigentes, portanto, só podem ser pessoas com alto poder financeiro para se dedicar a uma atividade tão importante sem qualquer remuneração. O resultado disso é que o dirigente acaba, via de regra, tendo uma profissão fora do futebol que o sustenta e precisa dedicar boa parte do seu tempo a isso. Não bastasse a questão de divisão do tempo em clubes que manejam recursos de grandes empresas – falamos aqui de orçamentos na casa de R$ 300 milhões -, ainda há uma outra: a falta de especialização. Não são gestores capacitados para estarem ali.

Mais do que isso, os dirigentes fazem questão que a gestão amadora prevaleça. Porque os clubes, como entidades associativas, possuem uma dinâmica própria, uma política interna e grupos de interesse. Ter um dirigente profissional, remunerado por seu trabalho, é um problema onde o ambiente não é empresarial, mas amador.

“Para impedir a evolução natural, grande maioria dos nossos dirigentes esportivos não relutam fazer acrobacias, inclusive constitucionais, acionando seus lobistas junto aos Poderes Públicos para impedir que o Estado faça o relógio correr, determinando que nossos clubes adotem formas de organização condizentes com o volume dos recursos que movimentam hoje em dia”, afirma José Francisco Manssur, advogado e conselheiro do São Paulo Futebol Clube, em artigo publicado no Blog do Juca.

Manter uma estrutura amadora, seja no clube, seja na organização dos torneios, é uma forma de manter o poder nas mãos de quem já exerce a política nos clubes. Cargo de diretor de futebol, ou vice-presidente de futebol, que fica acima dos executivos de futebol profissionais eventualmente contratados, acaba sendo uma moeda de troca no jogo político. Ou seja, é usado um conceito de profissionalização que, na prática, tem pouco de profissional.

A CONTRAPARTIDA DO GOVERNO

Com esse cenário do futebol brasileiro, o governo tem a faca e o queijo na mão para exigir mudanças imediatas e também a médio e longo prazo. Como falamos no nosso especial sobre eleições, a presidente reeleita, Dilma Rousseff, terá a responsabilidade de fiscalizar a negociação com os clubes. É de total interesse do governo que os clubes de futebol se tornem entidades bem administradas, lucrativas e saudáveis financeiramente.

A começar, porque os clubes possuem gigantescas dívidas com o governo, estimada em R$ 4 bilhões. Sendo melhores administrados e aumentando sua arrecadação, tendem a sanear suas dívidas com mais facilidade. Além disso, os clubes se tornando mais bem administrados e criando uma forma de autogestão tendem a melhorar suas próprias marcas internacionalmente e fazer o Campeonato Brasileiro ganhar mais prestígio. Um campeonato mais forte também fortalece o futebol brasileiro e vira um ponto de atração turística.

A Espanha, uma economia menor que o Brasil, atrai atenção de turistas do mundo todo, até mesmo daqueles que nem são tão ligados em futebol, graças a Barcelona e Real Madrid. Claro, o Brasil não deve copiar o modelo de gestão espanhola como um todo, especialmente no que diz respeito a direitos de TV, mas tem que pensar, sim, em tornar os clubes brasileiros pontos turísticos. O Rio de Janeiro, uma cidade com capacidade turística evidente, tem que fazer com que os visitantes queiram não só conhecer o Maracanã, como já acontece, mas queiram saber do Flamengo, Fluminense, Vasco, Botafogo. Isso vale para diversas cidades brasileiras.

A renegociação da dívida dos clubes está em curso. É isso que está em pauta na Lei de Responsabilidade Fiscal do Esporte (LRFE). O Bom Senso FC se reuniu com o ministro do Esporte, Aldo Rebelo, e com o secretário de Futebol e Defesa dos Direitos do Torcedor, Toninho Nascimento, para discutir a proposta final do LRFE.

O Bom Senso FC defende que haja diversos mecanismos para que os clubes usufruam da renegociação das dívidas. Um deles é ter um instrumento de fiscalização mais forte em relação às dívidas, analisando contratos de trabalhos trimestralmente, padronização de demonstração de balanços semestralmente, reavaliação do endividamento, também semestral, controle de déficit semestral, custo do futebol, outro semestral, e a apresentação da Certidão Negativa de Débito anualmente. O Bom Senso quer também uma entidade para fiscalizar que não seja a CBF e seja independente. As punições, para o grupo, não podem ser apenas o rebaixamento, como previsto. O grupo defende que haja punições gradativas, que vão desde aviso, proibição de registro de novos atletas, retenção de verbas, rebaixamento e proibição de disputa de campeonato.

“A aprovação dessa lei vai forçar a uma modernização da gestão dos clubes. Não há como se adequar a todas as novas regras propostas se não tiver uma gestão profissional, o que, certamente, vai fortalecer o futebol brasileiro”, disse Toninho Nascimento no Portal Brasil.

A questão ainda está em discussão e o governo poderá exigir medidas que tornem o futebol brasileiro mais organizado. A faca e o queijo estão nas mãos do governo para iniciar essa mudança. A bancada da bola já se movimenta para evitar que a fiscalização sobre débitos seja tão forte. Não quer também o teto salarial, outra mudança proposta pelos jogadores do Bom Senso, porque isso exigirá que as contas sejam mais abertas e mais vistoriadas. Há uma oposição grande a todos esses mecanismos de fiscalização que o Bom Senso quer que a LRFE tenha. Os dirigentes querem, no máximo, a punição esportiva. O governo terá que ser duro se quiser fazer, realmente, o futebol mudar. E terá que ser duro mesmo depois que vença a batalha para a aprovação, porque algum time eventualmente deixará de cumprir os requisitos e o time terá que ser punido. Não será um processo indolor. Eventualmente, pode até ser impopular. Imagine ter que impor duras penas financeiras e esportivas a um clube de massa, com muitos torcedores – leia-se eleitores? Pois é. A missão é dura. Resta saber se o governo aproveitará a chance ou, como sempre aconteceu até hoje, ira contemporizar e permitir que os dirigentes consigam vencer a queda de braço.