Postado por - Newton Duarte

Por que as regras do futebol são tão subjetivas, e os juízes têm tanto poder?

Por que as regras do futebol são tão subjetivas, e os juízes têm tanto poder? A gente explica

Wagner Reway ignora a reclamação dos jogadores do Coritiba (Foto: Jorge Rodrigues)

João Paulo subiu pela esquerda e cruzou, Norberto pulou para cortar e a bola bateu em seu braço. O árbitro Wagner Reway apontou à marca do cal. Pênalti. Com ele, o Flamengo bateu o Coritiba por 3 a 0 na Copa do Brasil, ganhou a disputa de penalidades máximas e avançou na competição. Mas nem todo mundo concordou com essa decisão. Na verdade, quase todos discordaram, o que faz o torcedor se perguntar: quer dizer que se o apitador sorteado fosse outro, a história do jogo do meu time poderia ser diferente?

Poderia. As regras do futebol não são exatas, nem abundantes. Apenas 17 para normatizar um jogo tão complexo e muitas delas exigem a interpretação do árbitro. Isso abre espaço para muitas polêmicas. Afinal, se muitas das decisões são subjetivas, cada indivíduo terá uma visão diferente sobre o que ocorreu, e o poder fica todo com o juiz. Isso incomoda o brasileiro acostumado a regras muito explicadinhas (em seus míííínimos detalhes), mas é natural que o futebol dê essa força aos apitadores. Como esporte inglês, o futebol adota o modelo britânico de lidar com regulamentos e leis, que dá mais autonomia aos juízes para interpretar e criar jurisprudência.

É uma cultura jurídica muito diferente da adotada no Brasil. O jurista francês René David dividiu o Direito em quatro “famílias”: romanista, Common Law, soviético e religioso. “O sistema romanista é comum aos países da Europa continental e os que assimilaram o Direito de taís países durante a colonização; a ‘Common Law’ é carecterística da Inglaterra e países por ela colonizados, inclusive os Estados Unidos; o sistema soviético (quando a União Soviética existia) baseava seu direito positivo nos princípios do socialismo marxista; e o religioso prevalece em países com os do Islã e Israel, que basearam seu direito em dogmas religiosos”, explica Luiz Fernando Coelho, professor da Universidade Paranaense de Umuarama e especialista em Direito Comparado.

Atualmente não existe mais o Direito soviético porque a maioria dos países socialista aderiu à economia de mercado. Os outros, porém, seguem firmes. O Brasil utiliza o romano, como outras nações de origem latina. No século 6º, o imperador Justiniano, devido à amplitude da dominação de Roma, criou um código civil escrito (Corpus Juris Civilis) para uniformizar as leis ao redor do Império. A fonte principal das leis desse sistema é a legislação. Isso significa que há menos espaço para os juízes criarem, modificarem ou adaptarem as leis. Esse acaba sendo um trabalho quase exclusivo do poder legislativo.

Por estar em uma ilha, explica Coelho, que estudou Common Law na Universidade de Washington, a Inglaterra sofreu menos a influência romana e desenvolveu o seu próprio sistema, baseando-se nos costumes e na tradição. Quem interpretava esses costumes eram os juízes. Por isso, nos países de origem anglo-saxã, como Estados Unidos e Canadá, a principal fonte das leis é a jurisprudência. Ou seja, os juízes têm a obrigação de aplicar penas que foram utilizadas anteriormente em casos semelhantes. Mas se os cenários forem fundamentalmente diferentes, também é dever do magistrado adaptar a punição e, assim, criar uma nova jurisprudência.

Quem explica direito isso é o próprio René David no texto “Os grandes sistemas do direito contemporâneo”:

“O sistema dos direitos românicos é um sistema relativamente racional e lógico porque foi ordenado considerando as regras substantivas do direito, graças à obra das universidades e do legislador. O direito inglês, pelo contrário, foi ordenado, sem qualquer preocupação lógica, nos quadros que eram impostos pelo processo. (..) No direito francês e nos outros direitos da família romano-germânica, os princípios do direito foram sempre procurados num corpo de regras preestabelecidos. Antigamente, Corpus Juris Civilis, hoje, códigos. A jurisprudência nos nossos países de direito escrito apenas é chamada a desempenhar, normalmente, um papel sencundário. Na Inglaterra, a situação apresenta-se muito diferente. Nunca se reconheceu lá a autoridade do direito romano como se fez no continente Europeu. A Common Law foi criada pelos Tribunais Reais de Westminster. A função da jurisprudência não foi só a de aplicar, mas também a de destacar as regras do Direito. É natural nestas condições que a jurisprudência na Inglaterra tenha adquirido uma autoridade diferente do que adquiriu no continente europeu. As regras que as decisões judiciárias estabeleceram devem ser seguidas, sob pena de destruírem toda a ‘certeza’ e comprometerem a própria existência da Common Law. A obrigação de recorrer às regras que foram estabelecidas pelos juízes, de respeitar os precedentes judiciários, é o correlato lógico de um sistema de direito jurisprudencial”.

Foi natural, portanto, que as regras do futebol fossem consolidadas com essa estrutura. Aconteceu em 1863, no contexto da Revolução Industrial, quando a Inglaterra fez a mesma coisa em outros âmbitos, como no direito criminal, na língua, nas eleições e outros esportes, como rúgbi e ciclismo. “O progresso do capitalismo pediu um correspondente progresso nas instituições. A época era de padronização em vários planos da vida inglesa”, escreveu o historiador Hilário Franco Júnior, no livro A Dança dos Deuses – Futebol, Sociedade, Cultura.

Em 150 anos, o futebol passou de 13 regras para 17. Seria muito pouco, se fosse apenas isso. Mas nem todas as adaptações aos novos hábitos, às novas práticas e ao mundo moderno precisaram ser escritas para serem respeitadas. Os árbitros seguem as orientações da International Board, responsável pelo regulamento, mas guiando-se bastante pela jurisprudência. Ou você nunca ouviu frases como “esse lance é claramente para cartão vermelho”, “ele não teve intenção de colocar a mão na bola” (como Antônio Carlos no Corinthians 3 x 2 São Paulo, vídeo abaixo), “o jogador adiantado participou da jogada” ou “esse carrinho é permitido”? Não há no livro de regras a descrição de um carrinho por trás na altura do joelho, nem uma solução mágica para se ler a mente dos jogadores que colocam a mão na bola, mas, por experiências passadas, os apitadores têm noção do que precisam marcar. E as orientações da Fifa servem muitas vezes para reunir a jurisprudência que vai se criando ou estabelecer uma nova interpretação devido a uma mudança da realidade do esporte.

A ideia de adotar um sistema de consenso dentro de campo nasceu junto com o futebol. Em seus primeiros anos, tratava-se de um jogo de cavalheiros e parecia inconcebível que um nobre tentasse passar a perna no outro. Os árbitros nem existiam e as decisões eram acertadas pelos atletas a cada jogada. Obviamente, isso durou muito pouco, e a partir de 1886, o árbitro passou a atuar dentro de campo. Acabou ganhando, guardadas as devidas proporções com os tribunais, o poder de interpretar e adaptar as regras e as jurisprudências às situações diferentes que acontecerem durante as partidas. “A decisão do árbitro é definitiva”, afirma o ex-árbitro Sálvio Spinola Fagundes Filho, comentarista dos canais ESPN. “Mas o mundo mundou, as coisas mudaram. Penso que cada vez mais as regras têm que buscar o contexto da exatidão. Matéria exata e não interpretativa.”

Com a International Board, há muito mais burocracia para uma regra ser modificada. Por exemplo, quando o árbitro Horácio Elizondo expulsou Zidane na final da Copa do Mundo de 2006, poderia ter sido criado um precedente para o uso da tecnologia. Seria uma adaptação aos novos tempos e hábitos, afinal de contas. Mas, politicamente, dentro da Fifa, não é unanimidade que isso deva acontecer. São oito membros (quatro da Fifa e um de cada país do Reino Unido) e qualquer alteração precisa de cinco votos. “Michel Platini é contra a bola com chip, os irlandeses apoiam o árbitro atrás do gol (por causa daquele lance com Thiery Henry nas Eliminatórias de 2010), os ingleses apoiam a tecnologia para ratificar os gols e por aí vai. Muitos são contra a tecnologia”, conta Spinola.

Essa diferença de sistemas legais pode ser um dos motivos que levam os torcedores do Brasil a contestarem tanto a figura do juiz. Na Common Law, é normal confiar no bom senso dos magistrados, que têm um poder legislador maior que os brasileiros e mais autonomia de interpretação. O que não significa que podem decidir o que quiserem uma vez que entram em campo. A obrigação deles é seguir os mesmos critérios e as jurisprudências já estabelecidas. Modificá-las apenas quando as situações são fundamentalmente diferente. Os problemas acontecem geralmente quando eles se esquecem disso.