Postado por - Newton Duarte

Psicologia do Esporte: A difícil transição da base para o profissional

Transição da base para o profissional: considerações em Psicologia do Esporte

Não são poucos os casos de jogadores que se destacam nas categorias de base, mas que quando incorporados aos plantéis profissionais não conseguem manter o mesmo nível de desempenho ou mesmo acabam abandonando a modalidade.

Dificuldades de adaptação? Aumento do nível de exigência? Mudança de foco? Provavelmente, todos estes fatores e mais alguns. Não é possível afirmar que a cobrança e expectativa por resultados seja diferente nas categorias de base e no profissional. Mas é relativamente fácil de observar que a exposição pública do jogador aumenta. E muito. Até existe cobertura de mídia nas categorias de base, mas nada comparado ao que ocorre nas equipes profissionais.

O primeiro impacto psicológico sobre o jogador que está em transição é justamente a frequência com a qual ocorrem as oportunidades para entrevistas, fotografias e vídeos. Mesmo sem ser titular, ou sem ser relacionado para jogos, o jogador novato passa a ter a sua imagem constantemente divulgada nas páginas oficiais de rede sociais do clube, e isto já é suficiente para mudar significativamente a sua vida. Clubes com torcidas numerosas têm suas páginas constantemente visualizadas e, consequentemente, os rostos dos jogadores rapidamente se tornam populares.

Em termos de concentração do foco de atenção, aí já se encontra um desafio para estes jogadores, na medida em que precisa aprender rapidamente a lidar com o assédio da torcida, para o bem e para o mal. Quando tem oportunidade de jogar na equipe principal, mesmo que por curtos espaços de tempo, passará a ser avaliado pela crítica esportiva e pela própria torcida. Se for bem, receberá críticas positivas e terá de aprender a controlar a própria vaidade. Se o contexto for o de uma equipe que não está indo muito bem nos torneios em disputa, a pressão pela utilização dos “garotos” aumentará e estes precisarão ficar muito atentos para não acreditarem na falácia das avaliações positivas momentâneas.

O que os fez chegarem até este patamar foi certamente uma boa dose de esforço, dedicação nos treinos e, é claro, desempenho em alto nível. Acreditar que o objetivo maior era chegar à equipe profissional e que já está pronto é um perigo grande que pode produzir acomodação, e aqui se encontra a mudança de foco de atenção. A partir daí, o jogador pode passar a se empenhar em manter uma boa imagem junto à crítica e à torcida, perdendo o foco nas rotinas que o fizeram chegar até ali. Caso, logo de início, não tenha tido bons desempenhos, certamente, as críticas serão negativas e o esforço é justamente não se deixar abater por elas e buscar entender quais as diferenças nos tipos de treinos, exigências técnico-táticas, funcionamento do grupo e lideranças, e focar em práticas que acelerem sua adaptação ao novo ambiente.

Algo que também é bastante comum neste tipo de transição é o processo de “bate e volta”. Há momentos em que o departamento médico do clube trabalha bastante, o clube perde temporariamente jogadores para convocação de seleções e, enfim, o treinador da equipe principal precisa completar o elenco para realizar determinados tipos de treinos. Nesta situação, alguns jogadores “sobem” para o elenco principal para compor o elenco e, com o retorno dos lesionados e/ou convocados rapidamente “descem” novamente. É preciso cuidado com os efeitos deste processo, na medida em que tais jogadores precisam ter consciência de que isto não significa um rebaixamento na carreira. Foi apenas uma transição temporária e poderão surgir novas oportunidades.

Um aspecto que não pode ser ignorado é o da mudança de salário: quando a transição assume um caráter “definitivo” é frequente que a diretoria renove o contrato com um aumento substancial nos vencimentos. É importante avaliar o impacto da mudança de poder aquisitivo para o jogador e para as pessoas da sua convivência. Em relação ao poder de compra, o jogador passa a receber uma quantia bem maior do que a média dos cidadãos brasileiros. E, assim, passa a ter acesso a bens e serviços que dificilmente conseguiria de modo tão rápido em outras carreiras. Com isso, o fluxo de pessoas que circulam a sua volta aumenta e as chances de que passe a abusar da vida noturna e do desfrute de bens recém-adquiridos também.

No dia a dia do clube, a observação da organização social, tanto entre os outros jogadores, quanto entre os diversos profissionais que compõem o departamento de futebol, é muito importante. Alguns dias de convivência são suficientes para começar entender a hierarquia presente, quem são os líderes e como exercem sua liderança. Aqui há uma diferença importante em relação à base e que precisa ser rapidamente assimilada: o número de pessoas envolvidas é muito maior, principalmente entre o grupo de profissionais. Muito provavelmente o jogador passará a conviver com um departamento médico mais amplo, com profissionais que nem sempre estão presentes na base e, assim, a rotina de atividades será muito mais diversificada, exigindo atenção nos procedimentos que também fazem parte da preparação. Coletas de sangue constantes para monitoração da carga de treino, uso de frequencímetros e GPS, medidas de composição corporal…

Não necessariamente estas atividades serão novidades para o jogador, mas a frequência com que são realizadas, sim. Este tipo de mudança requer um nível maior de atenção e organização, na medida em que as exigências de horários e rotinas aumentam. A conduta do jogador nestas atividades não é o principal, mas acaba sendo alvo de observação dos profissionais que as conduzem, e tais informações provavelmente irão parar na mão do treinador quando ele quer saber algo mais sobre as características de personalidade. Se o jogador for um fenômeno técnico e tático terão pouco peso, mas se estiver oscilando no desempenho poderá ser decisivo na hora de fechar uma relação de jogo. Na prática, a conduta na rotina do clube define o número de oportunidades que o jogador terá para jogar.

No relacionamento com os outros jogadores veteranos, costuma-se observar um ambiente geralmente receptivo por parte daqueles que já passaram por esta transição. Mas também existem rituais que devem ser respeitados. Abusar de dribles desnecessários ou exagerar na força em disputas de bola nos treinos pode gerar uma imagem negativa frente ao grupo. Pode soar como desrespeito. Outro item a ser destacado é a participação nas “resenhas”, que costumam ter muitas brincadeiras. Ter consciência de que os novatos serão testados e provocados tem seu valor na medida em que o grupo está tentando descobrir quem é aquele que acaba de se juntar ao plantel. O papel e o espaço do jogador naquele grupo será definido pelo que ele faz nos treinos, nos jogos e nos vestiários. Apresentar habilidades sociais para lidar com a diversidade de situações que a “resenha” contém poderão ajudar ou atrapalhar esta transição.

Por fim, cabe tratar da diversidade de métodos e filosofias de trabalho entre base e profissional. Seria ideal imaginar processos pedagógicos encadeados e que respeitassem as possibilidades das diferenças de maturação entre as categorias. Mas isso dificilmente acontece. Para tal é necessário que o clube tenha um processo de gestão que permita o planejamento da transição entre categorias, inclusive do sub-20 para o profissional. Isto necessariamente implica em visão de longo prazo e alinhamento de metodologias entre os profissionais que cuidam de cada uma das categorias. Para funcionar, é necessário realizar capacitação e realizar reuniões periódicas, incluindo-as nas rotinas do clube.

Da forma como funciona na prática da maioria dos clubes brasileiros, nada disso é realidade. Em geral, cada treinador tem o seu método de trabalho e os jogadores vão sobrevivendo, ou não, a estes métodos conforme vão mudando de categoria. Quase que se pode afirmar que há uma crença por trás dessa falta de planejamento: a de que o bom jogador é aquele que resiste a tais mudanças e não se deixa afetar por elas. Isso pressupõe que, mesmo com mudanças abruptas em diversos aspectos, o jovem jogador conseguirá manter seu foco e desempenho. Mas, uma tese muito mais provável é a de que grande parte dos clubes não consegue manter estrutura suficiente para o alinhamento entre os profissionais das categorias de base. Acabam sendo diversas equipes que em comum tem apenas parte da estrutura física e que usam a mesma camisa. Bem provável que, por este caminho, muitas promessas se percam nas encruzilhadas por falta de suporte adequado.

Sobre o papel da psicologia na transição, o mais comum ainda é a presença de psicólogos nas categorias de base, mas raros no trabalho com as equipes profissionais. Cabe aqui, analisar especificamente o papel do profissional de psicologia na transição. Um profissional bem qualificado certamente estará atento a todas estas variáveis apresentadas aqui e outras mais específicas que possam fazer parte do clube no qual trabalha. Novamente, refletindo sobre condições ideais, uma parte do alinhamento entre categorias seria justamente a implantação de um departamento de psicologia que pudesse acompanhar os jogadores desde as categorias iniciais da base até a transição ao profissional e sua manutenção neste último grupo.

Quando, no cenário mais comum, o departamento de psicologia está limitado às categorias de base, normalmente o profissional de psicologia somente terá acesso ao jogador em transição quando ele for devolvido para o sub-20, por exemplo. Neste caso, perdeu-se uma grande oportunidade de facilitar e efetivar a transição com um acompanhamento in loco. Neste caso, a atuação do psicólogo estará resumida ao atendimento emergencial voltado para aplacar a frustração. Esta é uma parte do trabalho psicológico, é claro, porém fica muito mais acentuada e frequente justamente pela falta de psicólogos nas equipes principais, e pela quase inexistência de trabalhos realizados em conjunto por profissionais de base e equipe profissional no mesmo clube.

Em síntese, na atual condição do futebol brasileiro, estamos perdendo muitos jovens talentos, desperdiçando oportunidades e, também, muito dinheiro. Alguns jovens se perdem pelo caminho mal sinalizado chegando mesmo a desistir do futebol, enquanto outros vão embora para outros mercados muito cedo porque não enxergam um cenário atraente a longo prazo no país.

Eduardo Neves Pedrosa di Cillo*

*Doutor em psicologia experimental pela Usp, trabalhou no América/MG, Botafogo/RJ e na Seleção Brasileira de Futsal

José Aníbal Azevedo Marques**

**Mestre em psicologia social pela PUC/SP, trabalhou no Red Bull Brasil e no Botafogo/RJ